Texto e SA : "No aeroporto" Carlos Drummond de Andrade



 “No aeroporto”- Carlos Drummond de Andrade
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões, pelos quais se faz entender admiravelmente. E o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores. Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono - e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia - eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis - porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade - e, até, que a nossa amizade lhes conferia caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.


ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. em: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p. 1107-1108.

VOCABULÁRIO:

alheio: que não nos pertence, que é de outra pessoa.
ameno: agradável, terno, meigo.
galeão: aeroporto internacional do Rio de Janeiro.
incontinência: incapacidade de reter urinas ou fezes.
ostensivo: algo praticado de forma intencional, de modo provocador.
parco: escasso, que faz economia ou que poupa.
puído: gasto
quadrimotor: aeronave que tem quatro motores.
requisitar: pedir, solicitar.

1) Os textos, orais e escritos, quando considerados em sua situação de produção, podem ser chamados de discursos.  Considerando como discurso a crônica lida, responda:

a) Quem é o locutor desse discurso, isto é, quem fala nesse texto?


b) Quem é o locutário, isto é, a quem o locutor está falando?


2) O texto acima tem começo, meio e fim.  Ele também está dividido em partes menores que chamamos de parágrafos.

a) O que é um parágrafo?
b) Quantos parágrafos há no texto lido? ____________________________________

c) Quantas frases há no último parágrafo? __________________________________

3) Na crônica lida, o narrador intencionalmente omite (deixa de dizer) uma informação.

a) Qual é essa informação?

b) Por causa dessa omissão, como Pedro é visto pelo leitor durante a leitura do texto?

4) O texto não apenas deixou de dar uma informação sobre Pedro, mas uma série de outras relacionadas com criança.  Além disso, criou “pistas falsas”, que nos fazem ter uma idéia enganosa sobre a personagem.  Marque um X apenas em um dos trechos a seguir que passam a impressão de que Pedro fala com muita fluência, clareza e profundidade.

(   )  “Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos”
(   )  “Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões”
(   )  “Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo”

5) Depois que o leitor toma conhecimento da idade de Pedro, um conjunto de comportamentos aparentemente estranhos da personagem começa a fazer sentido.  Cite alguns deles.

6) Que intenção tem o narrador ao omitir as informações sobre Pedro?

7) Para dar idéia do significado da partida de Pedro, o narrador conclui o texto com a frase “De repente o aeroporto ficou vazio”.  Que sentido tem essa frase no contexto, ou seja, que idéia o narrador quer passar através desta frase?
Complementar a atividade  com o vídeo da música de Milton Nascimento-"Encontros e Despedidas e pedir oralmente que relatem alguma experiência de uma viajem (de avião, trem, ônibus etc).







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